29 abril, 2013

A DANÇA*


Três pancadinhas na porta.
Ela perguntou quem batia, mas não obteve resposta. Perguntou novamente. Nada.
Mais três pancadinhas.
Sem muita paciência abriu a porta. Assustou-se, pois era seu marido. Ele não era dado a esse tipo de brincadeira. Na verdade, de brincadeira nenhuma! Estava sempre com um ar aborrecido e impaciente. Mas não hoje.
Uma das mãos escondia algo atrás, nas costas. Sorriu e estendeu-lhe um buquê.
Ela ficou parada olhando...

- Não vais pegar?
- Oi?! – perguntou atônita.
- Não vais pegar o buquê? Não te agradam essas flores?
- Sim, sim! Claro! Desculpe-me! Entre.
- Depois de você, querida.

“Querida”?! Ele não a chamava assim desde... Desde muito tempo!
Entrou. Colocou as flores em um vaso.

- A noite está linda, não?! – perguntou-lhe com um ar excitado.

Ela, mais uma vez, ficou sem saber o que responder. Ele sempre chegava reclamando de tudo: trânsito [mesmo que não houvesse], calor, economia do país, do patrão ou do subordinado ou qualquer outra coisa que fosse possível! Mas, naquela noite, estava sorridente e atencioso. Então, restou a ela apenas acenar com a cabeça confirmando que a noite estava mesmo bonita.
Sem jeito, saiu da sala para deixá-lo só assistindo a TV, como gostava. Na cozinha, foi surpreendida com ele ao seu lado estendendo a mão para fazer-lhe um carinho.

- A noite está realmente linda! Não queres passear? – perguntou carinhosamente.

Definitivamente, ela não entendia o que acontecia com seu esposo, mas resolveu aproveitar toda aquela simpatia e assentiu. Correu até o quarto para trocar-se. Abriu o guarda-roupa e fitou o longo vestido vermelho que há muito não usava. Segurou-o e seu cheiro invadiu o quarto.
Ele a esperava na sala. Quando ela apareceu à porta, era outra mulher. Belíssima em seu longo vestido decotado. Os olhos dele brilharam, foi até ela e beijou-lhe a mão e ofereceu-lhe o braço para que ela segurasse.

Passeavam na praça como um casal de jovens cheios de amor e graça.
Algum tempo depois, perceberam que já era tarde e não havia mais ninguém lá, mas não sentiam vontade de ir embora.
Após alguns abraços calorosos seus corpos começaram, lentamente, a mover-se de um lado para o outro. Ao som do silêncio, dançaram como nunca antes ousaram fazer.
Ela lembrou-se de quando os dois, ainda namorados, dançavam nas festas de família. Recordava do som dos bandolins tocados por seu pai e irmão. Lembrou-se de sua juventude e de seu sonho em ser bailarina, mas por amor, abandonou o sonho para ficar ao lado do esposo. No entanto, ali, ela girava, girava, girava, apertava seu corpo contra o dele e depois rodopiava.
Aos beijos, abraços e gritos de felicidade os dois faziam juras de amor eterno um ao outro. Os vizinhos acordaram com tanto barulho e, aos poucos, acendiam as luzes de suas casas e abriam as janelas para ver o que a acontecia e a praça ficou iluminada, mas ninguém foi capaz de repreender aquele casal apaixonado que transbordava amor.
Quando, ao longe, a alvorada despontava, o dia parecia amanhecer em paz.




(*) conto inspirado nas músicas "Valsinha" e "Bandolins".

09 abril, 2013

O BICHO-DEUS


Vi ontem um bicho
Na imundície do templo
Catando fé entre os detritos.

Quando achava alguma coisa,
Não questionava se era sincero:
Apertava contra si com voracidade.

O bicho não era um pobre,
Não era um deficiente,
Não era um homem.

O bicho, meu caro, era Deus.




[da série "Desconstruindo Grandes Poemas". A partir do poema "O Bicho" de Manoel Bandeira]