16 maio, 2013

A AVE


Estava sentado em minha poltrona, lendo e tentando esquecer a amada que não está entre hostes celestiais e sim, goza de lascívia alegria em sua nova morada.
Eu tremia de frio e tristeza, sem nenhuma poesia para enfeitar a ocasião. Foi quando aquela terrível besta – fruto de um ventre ignóbil – invadiu o meu salão.
Com um ruflar assombroso, perscrutou cada lugar. E, finalmente, encontrou um que considerou conveniente pousar.
Não sobre o busto de Atenas, mas em cima da urna de minha mãe, bem longe dos umbrais.
A negra ave de tempos ancestrais escancarou seu bico e quando pensei que iria amaldiçoar-me com um grito de “Nunca mais!”, surpreendeu-me, pois desaguava negro vômito sobre o chão. E meu receio em ouvir “Cras! Cras!” era inimigo de minha ambição.
A massa disforme e pútrida que a besta vomitara era o resumo de minha vida e a Ave profetizava: “Tu serás feliz jamais!”. Espanei o ar c’as mãos, “Vai-te daqui, besta agourenta. Deixa-me com meus ‘ais!’”.
Sofro por ela que me esqueceu, antes fosse Leonor, pois de presente só tenho a dor, já que o amor pereceu.
Olhou-me firmemente, e em seus olhos que nada negavam, pude ver os meus.
Por fim, entendi que as Trevas já me abraçavam e não adiantava gritar por Deus.
A loucura, tantas vezes invocada, tomava a razão.
Estava sozinho, não havia Ave alguma. Somente a solidão.

29 abril, 2013

A DANÇA*


Três pancadinhas na porta.
Ela perguntou quem batia, mas não obteve resposta. Perguntou novamente. Nada.
Mais três pancadinhas.
Sem muita paciência abriu a porta. Assustou-se, pois era seu marido. Ele não era dado a esse tipo de brincadeira. Na verdade, de brincadeira nenhuma! Estava sempre com um ar aborrecido e impaciente. Mas não hoje.
Uma das mãos escondia algo atrás, nas costas. Sorriu e estendeu-lhe um buquê.
Ela ficou parada olhando...

- Não vais pegar?
- Oi?! – perguntou atônita.
- Não vais pegar o buquê? Não te agradam essas flores?
- Sim, sim! Claro! Desculpe-me! Entre.
- Depois de você, querida.

“Querida”?! Ele não a chamava assim desde... Desde muito tempo!
Entrou. Colocou as flores em um vaso.

- A noite está linda, não?! – perguntou-lhe com um ar excitado.

Ela, mais uma vez, ficou sem saber o que responder. Ele sempre chegava reclamando de tudo: trânsito [mesmo que não houvesse], calor, economia do país, do patrão ou do subordinado ou qualquer outra coisa que fosse possível! Mas, naquela noite, estava sorridente e atencioso. Então, restou a ela apenas acenar com a cabeça confirmando que a noite estava mesmo bonita.
Sem jeito, saiu da sala para deixá-lo só assistindo a TV, como gostava. Na cozinha, foi surpreendida com ele ao seu lado estendendo a mão para fazer-lhe um carinho.

- A noite está realmente linda! Não queres passear? – perguntou carinhosamente.

Definitivamente, ela não entendia o que acontecia com seu esposo, mas resolveu aproveitar toda aquela simpatia e assentiu. Correu até o quarto para trocar-se. Abriu o guarda-roupa e fitou o longo vestido vermelho que há muito não usava. Segurou-o e seu cheiro invadiu o quarto.
Ele a esperava na sala. Quando ela apareceu à porta, era outra mulher. Belíssima em seu longo vestido decotado. Os olhos dele brilharam, foi até ela e beijou-lhe a mão e ofereceu-lhe o braço para que ela segurasse.

Passeavam na praça como um casal de jovens cheios de amor e graça.
Algum tempo depois, perceberam que já era tarde e não havia mais ninguém lá, mas não sentiam vontade de ir embora.
Após alguns abraços calorosos seus corpos começaram, lentamente, a mover-se de um lado para o outro. Ao som do silêncio, dançaram como nunca antes ousaram fazer.
Ela lembrou-se de quando os dois, ainda namorados, dançavam nas festas de família. Recordava do som dos bandolins tocados por seu pai e irmão. Lembrou-se de sua juventude e de seu sonho em ser bailarina, mas por amor, abandonou o sonho para ficar ao lado do esposo. No entanto, ali, ela girava, girava, girava, apertava seu corpo contra o dele e depois rodopiava.
Aos beijos, abraços e gritos de felicidade os dois faziam juras de amor eterno um ao outro. Os vizinhos acordaram com tanto barulho e, aos poucos, acendiam as luzes de suas casas e abriam as janelas para ver o que a acontecia e a praça ficou iluminada, mas ninguém foi capaz de repreender aquele casal apaixonado que transbordava amor.
Quando, ao longe, a alvorada despontava, o dia parecia amanhecer em paz.




(*) conto inspirado nas músicas "Valsinha" e "Bandolins".

09 abril, 2013

O BICHO-DEUS


Vi ontem um bicho
Na imundície do templo
Catando fé entre os detritos.

Quando achava alguma coisa,
Não questionava se era sincero:
Apertava contra si com voracidade.

O bicho não era um pobre,
Não era um deficiente,
Não era um homem.

O bicho, meu caro, era Deus.




[da série "Desconstruindo Grandes Poemas". A partir do poema "O Bicho" de Manoel Bandeira]

08 março, 2013

SOU MULHER!


Sou Eva
Sou Maria
Sou Madalena
Sou menina
Sou dama
Sou briguenta
Sou maliciosa
Sou diva
Sou birrenta
Sou mãe
Sou irmã
Sou filha
Sou força
Sou ninfeta
Sou feminina
Sou a que apanha
Sou a que chora
Sou a que bate
Sou amor
Sou dor
Sou de verdade
Sou travesti
Sou prostituta
Sou santa
Sou dessas
Sou daquelas
Sou tantas...

06 janeiro, 2013

METAMORFOSE


Comprei teu perfume e, à noite, borrifo sobre a cama.
Ouço todas as tuas músicas preferidas. Até as qu’eu mais odeio.
Refaço vários caminhos outrora percorridos por ti.
Adquiri todos os teus vícios.
De repente, transformei-me em ti. E só então entendi por que me deixaste.