19 janeiro, 2009

Em julho, peixe come verdura?

O escritor Jorge Pieiro encontra o Eu e a partir dele viaja e volta, de leste a oeste, e descobre que aqui é qualquer lugar

O que é útil e mesmo necessário ao homem está ao seu alcance, mas o que ele admira sempre é o inesperado. (Longino)

O prumo literário de Eu é o de um anarco-surrealista em busca de uma dose de absinto. Sinto que não pode ser tão fácil assim para ele correr nessa raia insana. Ana - uma Bolena qualquer desta Fortaleza - um dia olhou para olhos vermelhos de Eu, que lhe perguntou se já havia realizado alguma viagem ao incerto da terra, tendo como guia aquele Rick Wakeman já sem longo cabelo. Belo foi o espanto dela. Ela se mostrou resistente à resposta. Posta na mesa a dúvida, foram consumidos alguns relatos de Eu sobre viagens reais ou delirantes e, solta no ar, a questão-título desta crônica, talvez para fisgar qualquer atenção. Tensão, pois, ao admirável inesperado.

viagem viagem
Na BR-116 Eu trafegava em um Passat bege. Viera resmungando mantras desde o susto na barreira rodoviária. Sentia a força misteriosa que lhe sacudia o tronco, aqueles sons de vaca sagrada que imaginara ter ouvido numa sessão de ioga. Apropriara-se do delírio inusitado e imaginara estar piloto de um disco voador ali pelas alturas da Aerolândia. Psicodelismos sem incentivos externos - afinal, endorfina misturada com adrenalina servem para provocar isto mesmo - quase o levaram ao êxtase. Mas todo cuidado é pouco, apesar de que a imaginação é uma arma muito decente... E Ana achou graça. Nunca passara por aquilo...

de leste a oeste
Tanto fez, se a bordo de uma camionete com aimarás na fronteira do Peru, ou no furgão de um ex-refugiado em Tiahuanaco, ou nas asas da Lloyd Aero Boliviana, ou na canoa sobre o Titicaca, ou no trem da morte desde Puerto Suárez, ou no táxi para a Estação da Luz, ou no jeep vermelho em Bamberg, ou no Antonov 26 rumo a Cayo Largo, ou no trem a partir da Estación de Chamartín, tanto fez, se todos os caminhos terminaram ante o boi de pedra de defronte ao saguão do velho Aeroporto Pinto Martins, nas cercanias da Lagoa do Opaia, habitat do sapo-cururu ancestral. Voltar sempre foi um dilema. Esta Fortaleza, pensou Eu, é uma concha semi-lacrada, a falsa cela de Bárbara de Alencar no Forte Schoonenborch... E Ana sorriu desconfiada. Jamais imaginara tantos caminhos e nenhum destino...

daqui pra lá
Com um Evan(gelista), um viagem épica. Dois dias em um fusca amarelo rumo a Teresina. Fumaça, fome e farra. Mais fumaça e fome que farra. Viajar em todos os sentidos era o que dava o tom. Daqui pra lá, festa. De lá pra cá, cansaço, desespero, arrependimento. Eu não tinha mesmo o que fazer. Não bastasse, logo em seguida, o primeiro vôo, quase direto ao Geraldão, em Recife, para o rock progressivo do Rick. E, sem perder o rumo, salto distante à capital do Brasil para -ter-o-que-fazer na "Caminhada da Lua". Sem contar a loucura do semi-leito rumo a Belém, só para Ver-O-Peso... E Ana entortou o canto da boca, sem jeito, como se quisesse perguntar por que Eu voltava sempre...

o sem terno retorna
Eu ia todos os domingos ao centro Sobral da terra e retornava todas as terças à desalmada capital. O ônibus, ida e vinda, era nauseabundo e ninguém sentia. O povo era bom, mas não sabia disso direito. Nos terminais, em um, os pobres eram soberanos, como soberano fora o historiador e poeta Antônio Bezerra. No outro, Eu não entendia como podia ser tão fétido o caminho do alívio - dos ricos? E o engenheiro João Thomé certamente era só vergonha, onde estivesse. Uma amiga de Eu, pretendia um povo limpo!", apesar dos "pobres", mas também dos lixinhos jogados de Pajeros pretas dos que dizem pagar impostos, sic, para ter direitos...

aqui é qualquer lugar
Eterno é o retorno à convulsão... Eu sabe: de paz e sanidade é do que ele e esta Fortaleza necessitam... Para aquela Ana, Eu findara por admitir que a verdadeira viagem fora a daquele instante férias: ao coentro da guelra do peixe saboreado no Zé do Mangue, tardezinha de garças, de cheiro forte de chão e lama, de lua beirando a profana alegoria, de coração em pólvora, enfastiado de tantos problemas e de certas incertezas do cotidiano.

Crônica de Jorge Pieiro, Cearense, Escritor e Professor

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