Jorge Pieiro
Eu já levou muitas quedas na vida. de bicicleta Monareta ou sobre seu cavalo de ferro, pelos sertões ou no final das farras homéricas
Se existe razão de orgulho em meu passado, é que me tornei prisioneiro, e não soldado. (Joseph Brodsky)
Uma monareta verde foi o presente mais importante da vida de Eu. Aprendera muito cedo a andar sobre duas rodas e era até metido a realizar piruetas, mas não era tão ágil como Wilsinho ou Maninho, saltando do alto da pista-calçada da Igreja Matriz sobre um monte de areia. Na verdade, tinha era receio de estragar o presente dado pelos pais, por conta daquele sacrifício tão natural a famílias de dinheiro contado.
Mas não se fez de rogado uma vez e pediu emprestada a cobiçada monareta descascada - sem pára-lamas, sem porta-corrente, sem freios... - para o primeiro salto em direção ao... monte de areia quase metido narinas, ouvidos e goela abaixo, repercutido sob a vergonha daquelas vaias estrondosas só mesmo bem aplicadas pelas gargantas dos cearenses genuínos. A primeira queda a gente nunca esquece...
Distante da terra das bicicletas - a que quase fez o “videomaiquer” e fotógrafo Tibico registrar cenas no que seria o documentário Limoeiro, Amsterdã e Pequim - Eu até tentou pedalar pelas ruas soturnas da Terra do Sol, na época em que centenas de “baiques” interrompiam a calada com um desfile de fazer inveja a qualquer palco do mundo “fexion”. Mas não. A “baique” era peba e um desaviso levou Eu a espatifar-se em plena Duque de Caxias, quase bueiro a dentro.
Um dia daqueles distantes ainda, bateu uma vontade imensa de possuir uma Garelli. A tia ficava sem jeito, de tão cuidadosa, de quase negar uma volta ao sobrinho em seu motociclo amarelo... Quase por isso Eu jurou diante do espelho que um dia teria uma igual. Mas quando conseguiu juntar dinheiro, comprou do primo, Pote, de segunda mão, uma RX 125 marrom, Yamaha, com a qual ficou dormente logo na primeira semana, após, sem experiência nenhuma, engolir duzentos quilômetros de asfalto... Com a Honda vermelha já era mais hábil. Com a NX preta, metida a grande sem ser... Também, pudera, em companhia de Domingos, Catatau, Soldado e tais, não passava de militante de um bando de sabotadores de sanidades, gafanhotos de trilhas e da pista por trás da birosca de Zé do Peixe, na praia que nunca chega ao futuro.
A primeira queda veloz Eu também nunca esqueceu. Capacete não era ainda obrigatório, quanta irresponsabilidade! Todas as manhãs, saindo da Adolfo Herbster, pegava a Jovita rumo ao campus do Pici. Naquela, caíra um sereno suficiente para deixar o chão suado. A mãe, parece ter parte com os mistérios, comentou sem convicção, “vá de capacete, choveu...” Eu foi. Pois não é que inadvertidamente uma Brasília cruzou o caminho, deixando a motocicleta empurrando a porta traseira, enquanto, no auge do vôo, ouvia-se: “é um pássaro, é um avião” e não passava de Eu borbulhando no ar até se esborrachar sobre a bolsa de couro nas pedrinhas do asfalto... Quase uma fatalidade.
Mas as descaídas que contam mais foram aquelas irresponsáveis. Como por exemplo, a do retorno, já com o sol clareando, vindo do Estoril, excesso de cuidado que facilitou o sono do anjo da guarda. Numa passagem de nível, próxima à Francisco Sá, os olhos se embuçaram e o que restou foi a roda dianteira presa, acompanhada de rabiçaca da traseira, como se o cavalo de ferro se enfastiasse do dono da sela. E tome chão... Mas desta vez ninguém viu.
Ou aquela clássica, alta madrugada de soluços e imagens duplas, final da 13 de Maio, quando Eu, delirante, imaginou estar diante de um caminhão do lixo, boca de ferro engolindo tudo, e ele seria o próximo. E nesta fração, toda a convicção destinou-se ao freio a disco da dianteira. Não deu outra. Chão, farol e cotovelos integraram-se por um instante. Mas o melhor (ou pior?) estava por vir. Uma Kombi parou ao lado, um perguntou se estava tudo bem. Foi muito chato para aqueles improvisados anjos de resgate ouvirem o gracejo de Eu, perguntando: “Gostaram da queda?” Minha mãe que me perdoe o que ouvi...
Sem contar os acidentes que não aconteceram, mas poderiam ter transformado Eu em um montículo esponjoso de carne ralada. Por exemplo, a insânia de chegar novamente à capital pilotando uma 400cc, desde Juazeiro do Norte, passando por uma chuva de quase granizo sobre a flor da pele negra... Uma pedrinha ali desavisada seria quase um bicho sem proporção. Ou aquela descida da Serra de Baturité, até ficar sem freios na curva... A sorte veio da bananeira no caminho, melhor que qualquer pedra... Até a desistência de querer viver quase perigosamente, depois da inocente derrapada em óleo, na curva do viaduto, rumo a Messejana.
Ó tempos de Eu entre quedas e sorguimentos! Ó seleta expressão metafórica que cabe àqueles que se largam em perigos disfarçados de liberdade! Ó sonhos mal desenhados que despertaram sem seqüelas!
Pois foi dessa maneira que, sobrevivente, cedo da manhã, em plena Bezerra de Menezes, há poucos dias, Eu contou 28 motos e 17 bicicletas numa arrancada só, em direção ao centro da cidade. Entregues aos impulsos do vento e aos perigos do tempo, eles corriam em busca do pão a amassar na lida do dia. Eu ficou de memória, recordando, estarrecido, quase imóvel durante um segundo, até ser xingado entre buzinas, por não atentar para o sinal verde, sem mais nenhuma esperança, que o arrebatou daquele transe para a dura realidade da má educação e da intoxicada loucura das gentes... Em busca de quê?
Crônica de Jorge Pieiro, Cearense, Professor e Escritor
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